conflitos, tradições e contemporaneidade.

Foto: Francisco  Flor

Foto: Francisco Flor

É bem verdade que nos dias atuais a eletricidade e as telecomunicações aproximaram a vida urbana das comunidades mais isoladas, influenciando as suas formas de se relacionar com a natureza e reformulando os valores sociais. A cientificidade foi substituindo as explicações que antes era função dos mitos e das lendas. A labuta nas atividades tradicionais (agricultura, pesca e artesanato) tem perdido a capacidade de atrair os jovens em detrimento de empregos na cidade. A necessidade de conseguir dinheiro tem aumentado a pressão sobre os recursos naturais, levando a degradação ambiental.

Ao mesmo tempo, os diferentes elementos naturais que antes eram de usufruto coletivo (terra, água, sementes) tornam-se cada vez mais privatizados, ou seja, têm sido direta e indiretamente apropriados pelas grandes empresas do agronegócio. E infeliz- mente, existem muitos exemplos disso no estado.

Os grandes rios do Ceará, por sua oferta de água e facilidades de logística, têm sido alvo de notórios projetos de desenvolvimento econômico. São comuns os grandes e novos modelos de projetos de irrigação, nos quais o poder público garante a infra- estrutura, inclusive a água, e põe à venda o direito de explorar as terras irrigáveis.

As margens dos grandes rios no seu baixo curso, ou seja, quando estes se aproximam do mar, também têm sido apropria- das por empresas de cultivo de camarão em cativeiro: a carcinicultura. As consequências ambientais e sociais dessa atividade estão relacionadas, entre outros aspectos, à poluição das águas, ao desmatamento do mangue e à interdição de acesso aos rios e mangues para as populações tradicionais que vivem desse ecos- sistema, provocando a degradação do patrimônio natural, a descaracterização cultural e a consequente desorganização social e econômica dessas comunidades.

Açudes são construídos nos grandes rios com recursos públicos, mas, muitas vezes, prestam-se a fornecer água para os projetos de irrigação voltados para a iniciativa privada ou para o atendimento de uma população urbana que vive a centenas de quilômetros de distância deles. É comum ouvir relatos de comunidades localizadas próximas às margens de açudes, mas que não tem acesso à água para abastecimento doméstico nem irrigação de lavouras de subsistência.

Foto: Francisco Flor

Foto: Francisco Flor

FORMAS INDIRETAS DE APROPRIAÇÃO DAS ÁGUAS

Existem formas indiretas de apropriação das águas. Tudo o que utilizamos no nosso dia a dia, no trabalho, em casa, na escola, precisa de água para ser produzido, mesmo que a gente não perceba. A figura a seguir apresenta alguns exemplos do consumo de água necessário para a produção de alguns itens.

O contexto atual em que se encontram os grandes rios do Ceará que ajudam a definir culturas e que permeiam a memória coletiva das pessoas que vivem em torno deles, desde suas origens até o mar, inspira preocupação. A instauração de processos de degradação ambiental é resultado de inúmeros fatores, entre os quais a falta de saneamento básico, a poluição por agrotóxicos provenientes das lavouras próximas ao leito dos rios e açudes, a retirada de areia para a construção civil, o desmatamento das suas margens, a pesca em escala industrial, as interferências sobre sua dinâmica natural e o mau uso das suas águas.

Na perspectiva que discutimos aqui, a perda do equilíbrio ecológico e a privatização dos espaços e recursos naturais resultam não apenas no comprometimento da qualidade ambiental. A ameaça ao patrimônio natural, aqui entendi- do enquanto componente do patrimônio cultural, significa a perda dos locais de memória coletiva, dos conhecimentos tradicionais e das condições culturais, sociais e econômicas de reprodução das populações que dependem desses bens naturais, convergindo, em última análise, para a perda das referências culturais locais.

Quando reconhecemos a contribuição do patrimônio natural para a constituição da cultura da qual fazemos parte, temos a chance de compreender as ameaças que a vida urbana, o desrespeito aos elementos naturais e a cultura mercantil podem representar a esse patrimônio. Não valorizar o patrimônio cultural coletivo é abdicar daquilo que somos: uma composição formada pelas práticas históricas e culturais acumuladas pelas coletividades em constante contra- posição com as nossas próprias experiências atuais.

A forma como nos relacionamos atualmente com as águas ainda guarda, conscientemente ou não, elementos de uma cultura mais próxima da natureza? Que tipos de consequências podemos experimentar quando nos desconectamos dos elementos naturais que nos permitem a existência? É possível estabelecer, ou reestabelecer, conexões com o patrimônio natural que nos rodeia? Quais ações podemos desenvolver, e exigir que sejam implementadas, para melhorar a qualidade ambiental dos nossos grandes e pequenos rios?

Esperamos que nossa discussão tenha sido apenas um estopim para novas reflexões e que elas tenham incidência na prática cotidiana. É importante lembrar que nossa existência no mundo é um ato político, mesmo que não tenhamos consciência disso. Sejamos, então, sujeitos da sociedade que escolhemos construir, e não expectadores de um mundo que parece impossível transformar.

Deixe um comentário